CyberBRICS

A Covid-19 torna o acesso à Internet um direito fundamental

Por Luca Belli

Exclusão social para os desconectados e conjuntura perfeita de fake news para os parcialmente conectados.

Teletrabalho em home office, aulas online, entregas por meio de aplicativos, notícias e diversões em streaming. Por causa da pandemia de Covid-19, essa se tornou nossa nova rotina. Sob a condição de se ter acesso à Internet. Sim, porque para quase 4 bilhões de pessoas no mundo e cerca 40 por cento da população brasileira a conexão à Internet nem é uma opção. Simplesmente não existe. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios de 2019, nas classes D e E, o percentual dos desconectados brasileiros alcança 59%.

Tente imaginar se você ou seus filhos não pudessem ter acesso a aulas online, a serviços públicos digitalizados (como pagaria seus impostos) ou à possibilidade de continuar suas atividades de trabalho como reuniões ou migração da venda de seus produtos e serviços online. A resposta é muito simples. Você não ficaria excluído simplesmente da Internet, você ficaria excluído completamente da cidadania.

E é exatamente por essa razão que a Lei 12.865 de 2014 (conhecida como Marco Civil da Internet) afirma no seu artigo 7º que “o acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania”. Em época de confinamento por coronavírus, as disparidades entre quem tem acesso e quem está desconectado equivalem à diferença entre continuar a ter uma vida social e a prisão domiciliar.

A situação é crítica para as regiões Nordeste e Norte, que apresentam taxas de acesso de 52,3% e 54,3%, respectivamente, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Esses indicadores são ainda menores nas áreas rurais. Além da população desconectada no seu próprio domicílio, 47% da população com condições econômicas mais reduzidas (classes D e E) estão numa situação ainda mais sensível, tendo somente conexão móvel com franquias de dados extremamente limitadas.

Você seria capaz de pensar como um estudante pode acompanhar as aulas online se sua conexão for somente móvel e a franquia acabar no meio da primeira aula? Você imagina as maravilhas da telemedicina sem a tele? Você acredita que um eleitor possa controlar as informações sobre os candidatos em que deverá votar em seis meses se não tiver acesso à Internet?

A conjuntura perfeita das fake news

Ainda pior é constatar que uma porcentagem considerável da população é considerada como “conectada” à Internet, mas, na verdade, é somente conectada a redes sociais e poucos outros aplicativos dominantes. Essa é a situação de 55% dos usuários brasileiros que, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), acessam Internet somente por plano móvel pré-pago. Tais planos incluem sempre franquias de dados limitadas e aplicativos patrocinados, acessíveis sem consumir a franquia.

Se a falta de acesso à Internet leva à exclusão social, especialmente na época de coronavírus, ter somente acesso a aplicativos patrocinados é uma verdadeira bomba-relógio para a democracia. Os únicos aplicativos que todas as operadoras patrocinam são as principais redes sociais, junto com alguns parceiros econômicos das operadoras. Tais práticas, comumente chamadas de zero rating, têm consequências nefastas para a concorrência, a proteção de dados e a liberdade de informação, elementos essenciais de qualquer democracia.

O patrocínio de aplicativos direciona claramente a escolha do usuário a um produto que não é melhor por qualidade. A escolha é determinada simplesmente pela ausência de custo percebida pelo usuário (particularmente os mais pobres). Um aplicativo como Signal tem exatamente as mesmas caraterísticas do WhatsApp (sendo um app open source desenvolvido pelos mesmos desenvolvedores do WhatsApp) mas não coleta dados pessoais do usuário. Seria natural pensar que Signal teria um enorme sucesso, mas tem somente uma fração dos usuários do WhatsApp – sendo necessário consumir a franquia móvel para usar Signal enquanto o uso do WhatsApp é “grátis”.

Mas será verdadeiramente assim? Ou, simplesmente, os aplicativos patrocinados acabam sendo pagos com dados pessoais ao invés de dinheiro? Veja bem, num contexto no qual a população deve estar em quarentena forçada, é claro que a conexão à Internet se torna essencial, e a parte da população desconectada é de fato condenada à exclusão social.

Mas aquela parte da população que fica conectada somente a redes sociais se encontra numa situação paradoxalmente ainda mais vulnerável, considerando que tais redes são reconhecidas como os principais vetores de fake news. Além de enfrentar a pandemia de coronavírus, quem tem acesso somente a redes sociais vai ter que enfrentar também a pandemia de fake news. A saúde psíquica e física de uma enorme parte da população está em jogo. E, em ano eleitoral, é a saúde da própria democracia que corre o risco de ser afetada.

Quem continua ganhando apesar da Covid-19?

Num período de pandemia, no qual a conexão é muito mais prolongada devido ao confinamento, concentrar a atenção de uma porção enorme da população em poucos aplicativos patrocinados significa, consequentemente, concentrar enormemente a coleta de dados pessoais desses indivíduos nas mãos dessas poucas entidades, que geralmente já são dominantes.

Mas esse lucro extraordinário é tributado devidamente? Mesmo se o Estado quisesse tributar esses ganhos extraordinários, que algumas empresas de tecnologia realizam devido ao enorme aumento de tempo – e, portanto, produção de dados – em seus aplicativos, tal tributação seria simplesmente impossível.
Os dados são imateriais, e, apesar de serem coletados no Brasil, a produção de lucro acontece em servidores estrangeiros, onde são processados. O aumento extraordinário de lucro nunca será tributável.

A importância do acesso à Internet como um direito fundamental, portanto, não é devida somente à necessidade de preservar a liberdade de comunicação e a capacidade de trabalhar ou aprender do indivíduo. É essencial, para limitar os riscos de manipulação eleitoral, evitar a concentração de dados pessoais nas mãos de um número exíguo de entidades dominantes.

Quais as soluções?

Para melhorar sensivelmente a situação, a primeira etapa é eliminar imediatamente as franquias de dados, pelo menos enquanto permanecer a pandemia, como está sendo feito por exemplo no Reino Unido. Recentemente, o Intervozes protocolou um requerimento na ANATEL, nesse sentido.

Idealmente, todos os indivíduos categorizados como classe D e E deveriam receber um subsídio para acesso à Internet ao longo da pandemia. Essa é a única medida para não excluir socialmente uma enorme parte da população que será a mais afetada pelas consequências econômicas do coronavírus.

No médio e longo prazos, é essencial reconhecer o valor fundamental do direito ao acesso à Internet e estimular modelos alternativos de conectividade que permitam uma verdadeira universalização do acesso e um verdadeiro empoderamento dos indivíduos. O desenvolvimento de redes comunitárias, que acaba de ser promovido pela própria ANATEL, tem incrível potencial.

A rede comunitária guifi.net, por exemplo, nasceu há quinze anos para conectar a aldeia de Osona, na Catalunha, que além de não ter acesso à Internet, tinha economia quase nula. Hoje, guifi.net tem mais de 200.000 usuários e oferece preços inferiores e qualidade maior do que as redes tradicionais. Osona, por sua vez, tem uma economia em crescimento de 6% ao ano e a percentagem da população com computador alcança 82%, treze pontos acima da média nacional de 69%. 

Não somente as soluções que experimentamos até hoje se demonstraram ineficientes para conectar toda a população. Na conjuntura atual elas têm o potencial de se tornarem perigosas para uma população que jamais, na história recente, precisou tanto de um Estado forte, uma visão clara e políticas públicas sustentáveis. 

Originalmente publicado em 30/04/2020 por Convergência Digital